quarta-feira, abril 17, 2013

A Casa Tomada, de Júlio Cortázar.

Casa tomada
Julio Cort�zar

Gost�vamos da casa porque, al�m de ser espa�osa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem �s mais vantajosas liquida��es dos seus materiais), guardava as lembran�as de nossos bisav�s, do av� paterno, de nossos pais e de toda a nossa inf�ncia.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Faz�amos a limpeza pela manh�, levantando-nos �s sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os �ltimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almo�o era ao meio-dia, sempre pontualmente; j� que nada ficava por fazer, a n�o ser alguns pratos sujos. Gost�vamos de almo�ar pensando na casa profunda e silenciosa e em como consegu�amos mant�-la limpa. �s vezes cheg�vamos a pensar que fora ela a que n�o nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada id�ia de que o nosso simples e silencioso casamento de irm�os era uma necess�ria clausura da genealogia assentada por nossos bisav�s na nossa casa. Ali morrer�amos algum dia, pregui�osos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, n�s mesmos a derrubar�amos com toda justi�a, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para n�o incomodar ningu�m. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sof� do seu quarto. N�o sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa � um pretexto para n�o fazerem nada. Irene n�o era assim, tricotava coisas sempre necess�rias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. �s vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engra�ado ver na cestinha aquele monte de l� encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos s�bados eu ia ao centro para comprar l�; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas sa�das para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em v�o se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 n�o chegava nada valioso na Argentina. Mas � da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu n�o tenho nenhuma import�ncia. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tric�. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco est� terminado n�o se pode repetir sem esc�ndalo. Certo dia encontrei numa gaveta da c�moda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; n�o tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. N�o precis�vamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era s� o tric� que distra�a Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas m�os como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no ch�o onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como n�o me lembrar da distribui��o da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e tr�s quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que d� para a rua Rodr�guez Pena. Somente um corredor com sua maci�a porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o sal�o central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do sal�o. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o sal�o; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avan�ando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais al�m come�ava o outro lado da casa, tamb�m se podia girar � esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contr�rio, dava a impress�o de ser um apartamento dos que agora est�o construindo, mal d� para mexer-se; Irene e eu viv�amos sempre nessa parte da casa, quase nunca cheg�vamos al�m da porta de mogno, a n�o ser para fazer a limpeza, pois � incr�vel como se junta p� nos m�veis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso � gra�as aos seus habitantes e n�o a outra coisa. H� poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e j� se apalpa o p� nos m�rmores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macram�; d� trabalho tir�-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos m�veis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunst�ncias in�teis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a id�ia de colocar no fogo a chaleira para o chimarr�o. Andei pelo corredor at� ficar de frente � porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Tamb�m o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos at� a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e tamb�m passei o grande fecho para mais seguran�a.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarr�o, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tric� e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Ent�o — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarr�o com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar � sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos hav�amos deixado na parte tomada muitas coisas de que gost�vamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freq�entemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fech�vamos alguma gaveta das c�modas e nos olh�vamos com tristeza.

— N�o est� aqui.

E era mais uma coisa que t�nhamos perdido do outro lado da casa.

Por�m tamb�m tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levant�ssemos bem mais tarde, �s nove e meia por exemplo, antes das onze horas j� est�vamos de bra�os cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo � cozinha para me ajudar a preparar o almo�o. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almo�o, Irene cozinharia os pratos para comermos frios � noite. Ficamos felizes, pois era sempre inc�modo ter que abandonar os quartos � tardinha para cozinhar. Agora bastava p�r a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para n�o afligir minha irm�, resolvi rever a cole��o de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confort�vel. �s vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o m�rito de algum selo de Eupen e Malm�dy. Est�vamos muito bem, e pouco a pouco come�amos a n�o pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de est�tua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e n�o da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que �s vezes faziam cair o cobertor ao ch�o. Nossos quartos tinham o sal�o no meio, mas � noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouv�amos nossa respira��o, a tosse, pressent�amos os gestos que aproximavam a m�o do interruptor da l�mpada, as m�tuas e freq�entes ins�nias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores dom�sticos, o ro�ar met�lico das agulhas de tric�, um rangido ao passar as folhas do �lbum filat�lico. A porta de mogno, creio j� t�-lo dito, era maci�a. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, fal�vamos em voz mais alta ou Irene cantava can��es de ninar. Numa cozinha h� bastante barulho da lou�a e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o sil�ncio, mas, quando volt�vamos para os quartos e para o sal�o, a casa ficava calada e com pouca luz, at� pis�vamos devagar para n�o incomodar-nos. Creio que era por isso que, � noite, quando Irene come�ava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

� quase repetir a mesma coisa menos as conseq��ncias. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia at� a cozinha pegar um copo d'�gua. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a aten��o de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ru�dos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde come�ava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o bra�o de Irene e a fiz correr comigo at� a porta cancela, sem olhar para tr�s. Os ru�dos se ouviam cada vez mais fortes, por�m surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora n�o se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tric� pendia das suas m�os e os fios chegavam at� a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tric� sem olhar para ele.

— Voc� teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— N�o, nada.

Est�vamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no arm�rio do quarto. Agora j� era tarde.

Como ainda ficara com o rel�gio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu bra�o a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e sa�mos assim � rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da cal�ada. N�o fosse algum pobre-diabo ter a id�ia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.

Filho de pai diplomata, Julio Cort�zar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separa��o de seus pais, o escritor foi criado pela m�e, uma tia e uma av�. Com o t�tulo de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos col�gios do interior daquele pa�s. Por n�o concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no g�nero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Besti�rio” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980), “Salvo el crep�sculo” — p�stumo (1984) e "Pap�is inesperados" — p�stumo (2010). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984.