domingo, junho 27, 2010

A Queda da Casa dos Usher, de Edgar Allan Poe.

Bom dia!

Aqui está o conto "A Queda da Casa dos Usher" como combinado, espero que ajude de alguma forma.

Boa leitura, comentários e interpretações!

Abraço,

Mauro.



                                     A Queda da Casa dos Usher.


"Durante todo aquele triste, escuro e silencioso dia outonal, com o céu encoberto por nuvens baixas e opressivas, estive percorrendo sozinho, a cavalo, uma região rural singularmente deserta, até que enfim avistei, com as primeiras sombras da noite , a melancólica Casa de Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção, um sentimento de intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo intolerável porque essa impressão não era suavizada por qualquer sensação meio prazenteira, porque poética, com que a mente geralmente recebe até mesmo as mais sombrias imagens naturais de desolação e de terror. Observei a paisagem à minha frente: a casa simples e a simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as janelas semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma uma depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena senão ao que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo retorno à vida cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio, uma prostração, uma sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição de pensamento que nenhum excitamento da imaginação conseguiria forçar a transformar-se em algo sublime. Que era, parei para pensar, que era que tanto em perturbava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e eu não conseguia controlar as sombrias imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso. Fui forçado a socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem dúvida, combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos afetar assim, embora a análise desse poder se situe em considerações além de nossa perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo diferente nos pormenores da cena, dos detalhes do quadro, bastasse para modificar, ou talvez, parar suprimir sua capacidade de provocar impressões aflitivas. Com essa idéia na cabeça, guiei o cavalo até a margem íngreme de um fosso negro e sinistro cujas águas paradas refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda mais forte do que antes, a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos, dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.



Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um convite muito estranho.



Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família quanto para a mansão da família.



Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.



Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde

o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.



Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família. Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa. Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou até a presença de seu patrão.



Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.



Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer idéia de simples humanidade.



Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada, gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de excitação.



Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.



Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.



- Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o fantasma sinistro do MEDO.



Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se aventurava a sair... a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui... influência que alguns detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito... efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua existência.



Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.



- A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.



Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de medo ? e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.



A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.



No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.



Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.



Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.



Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados "O Palácio Assombrado", eram quase exatamente assim:



I



No mais verde de nosso vales,

Por bons anjos habitado,

Outrora um belo e rico palácio,

Radiante palácio, se erguia.

Nos domínios do rei Pensamento,

Lá estava ele!

Nunca serafim algum abriu as asas

Sobre tão bela obra.



II



Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,

Em seus telhados flutuavam, ondulando

(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos

De antigamente)

E toda suave brisa que brincava,

Naqueles doces dias,

Pelos muros pálidos e engalanados,

Um sublime perfume desprendia.



III



Quem passava por esse vale feliz

Por duas janelas luminosas via

Espíritos deslizando, musicais,

Ao som de alaúde bem afinado,

Em volta de um tronco, onde sentava-se

(Porfirogênito (1)!),

Na grandeza de sua glória muito justa,

O senhor desse reinado.



IV



Pela bela porta do palácio

Brilhante com pérolas e rubis,

Ia passando, passando, passando,

E sempre mais cintilando,

Uma tropa de Ecos cujo doce dever

Era apenas cantar

Com vozes de insuperável beleza,

A viva sabedoria do rei.



V



Mas vultos maus, trajados de luto,

Atacaram o alto reino do monarca;

(Ah, choremos, pois nunca mais

O dia vai nascer para ele, o desolado!)

E, em volta do palácio, a glória

Que brilhava e florescia

Não passa agora de mal lembrada história

Dos velhos tempos sepultados.



VI



E quem passa agora pelo vale,

Pelas janelas rubras vê

Enormes formas que fantásticas se movem,

Ao som de melodia discordante;

Enquanto isso, como rio terrível,

Pela pálida porta se precipita

Para sempre uma hedionda multidão

Que gargalha, mas não mais sorri.





Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.



Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.



Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.



A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e áspero.



Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.



Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.



Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.



Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.



- E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.



Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a tempestade.



A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.



- Você não deve... não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.



O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.



E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.



Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:



Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:



Quem aqui penetrar, conquistador será;

Quem o dragão matar, o escudo ganhará.



E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.



Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.



Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:



E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.



Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata ? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.



- Não ouve, agora?... Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo... e no entanto não tive a coragem... Oh, pobre de mim, miserável infeliz!... não tive coragem... não tive coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os... há muitos, muitos dias... mas não tive coragem... não tive coragem de falar! E agora... esta noite... Ethelred... ha! há!... o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do dragão e clangor do escudo!... Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ? Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!



Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que tinha previsto.



Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se alargando rapidamente... soprou uma feroz rajada de vento... O círculo inteiro do satélite tornou-se visível aos meus olhos... Meu cérebro vacilou quando vi aquelas sólidas paredes desmoronarem... ouviu-se um longo e desordenado estrondo, como o retumbar de mil cataratas... e o fosso fétido e profundo, a meus pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher."



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(1) Porfirogênito: Significa, em grego, "nascido na púrpura". Dizia-se dos filhos dos antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.

Edgar Allan Poe.



Trabalho Bimestral - 7ª séries.

Bom dia!

Segue abaixo o texto que vocês deverão analisar para o trabalho bimestral de Leitura e Produção de Textos. Como já sabem é o conto "As Formigas" de Lygia Fagundes Telles. As orientações e os roteiros com todas as questões sobre o trabalho já foram entregues à todos vocês, portanto, agora faltam somente as melhores partes: leitura e análise.

Ps: Em outra postagem diponibilizarei os textos do Edgar Allan Poe: O Gato Preto e a Queda da Casa dos Usher, para a análise comparativa.

Bom trabalho!!!

Mauro.



"Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

- É sinistro.

Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.



- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima.



A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.

- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção.

- Estudo direito. Medicina é ela.

A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.



- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.



Minha prima voltou-se: - Um caixote de ossos?



A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoa(ho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.



- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? - Ele disse que eram de adulto. De um anão.



- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito, todos os dentinhos!



- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.



Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. C quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.



- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.



Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.



- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido?



- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.



No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.



- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.



- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?



Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.



- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei.



- Só de ida.



Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.



- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool.



- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.



- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.



Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.



- Esquisito. Muito esquisito. - O quê?



- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?



- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.



Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campanhia. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.



Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.



- E as formigas?



- Até agora, nenhuma.



- Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando.



- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas, então, quem?!



Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.



- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.



Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namora dos ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.



- Elas voltaram.



- Quem?



- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.



A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.



- E os ossos?



Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.



- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... Estão se organizando.



- Como, se organizando?



Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.



- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral quejá está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!



- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?



Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia.



Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.



- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.



- Estou com medo.



Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.



- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?



Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.



- Voltaram - ela disse.



Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí?



Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz.



- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...



- O que foi? Fala depressa, o que foi?



Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.



- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.



- Você está falando sério?



- Vamos embora, já arrumei as malas.



A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.



- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?



- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!



- E para onde a gente vai?



- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.



Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?



No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra."


Se você interessou-se pela leitura, além do deixar o professor feliz, recomendo adquirir o livro em que este conto está presente, com vários outros tão ou mais interessantes também. O nome do livro é Seminário dos Ratos, ed. Companhia das Letras.

O Gato Preto, de Edgar Allan Poe.

Bom dia!

Segue abaixo integralmente o conto e abaixo do texto um link caso achem necessário imprimí-lo.

Boa leitura, boa análise, reflexões e um bom trabalho.

Mauro.

                                              "O gato Preto"



"Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.






No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.






Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.






Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.






Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.






Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.






Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.






Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.






Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.






Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.






Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.






Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.






Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.






Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.






Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.






Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.






Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.






De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.






Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.






No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.






Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!






Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!






Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.






Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.






Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.






Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.






Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.






E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".






O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.






Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.






No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.






- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.






Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.






Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.






Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.






Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.






Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!





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Forte abraço à todos!