sábado, abril 09, 2011

Orientações para o trabalho sobre "Contos Literários".

Caros alunos,

Adianto por aqui como será desenvolvido o trabalho sobre o conto. Durante as aulas realizarei a leitura do conto "A Queda da Casa dos Usher" do Edgar Allan Poe e, após isso, falarei sobre o conto: História, Conceitos, Estrutura. E então farei uma ligação dessas observações com uma análise e, porteriormente, uma interpretação - que aprenderemos qual é a diferença entre estes dois conceitos. Por fim, faremos uma conexão com outros textos, pra compreender o conceito de Intertextualidade, primeiramente com o texto "As Formigas" de Lygia Fagundes Telles e o filme Francês "Meu Tio" de Jacques Tati, de 1958, que assistimos recentemente.

Pra quem não conseguiu assistir o filme, ou quer assistir novamente, deixo o link para download  - em quatro partes aqui.

Já o texto escrito que vamos utilizar da Lygia Fagundes está disponível aqui

Bom filme e boa leitura,

Abraço,
Profº Mauro.


"A Queda da Casa dos Usher" de Edgar Allan Poe.

Queridos alunos da 6ªY,

Como estipulado em sala, aqui está o conto "A Queda da Casa dos Usher" de Edgar Allan Poe, que iremos ler, estudar, analisar e interpretar - veremos nas próximas aulas que estas são noções diferentes uma das outras.

Será necessário uma cópia por grupo, mas o ideal seria cada um com o seu exemplar, tentaremos alternativas para quem estiver com dificuldade, portanto, avisem ao professor qualquer problema. Segue abaixo o texto e, se preferirem uma versão em PDF, para impressão.

Boa leitura!

Profº Mauro.




A Queda da Casa dos Usher.

"Durante todo aquele triste, escuro e silencioso dia outonal, com o céu encoberto por nuvens baixas e opressivas, estive percorrendo sozinho, a cavalo, uma região rural singularmente deserta, até que enfim avistei, com as primeiras sombras da noite, a melancólica Casa de Usher. Não sei por quê, mas, assim que entrevi a construção, um sentimento de intolerável tristeza apoderou-se de meu espírito. Digo intolerável porque essa impressão não era suavizada por qualquer sensação meio prazenteira, porque poética, com que a mente geralmente recebe até mesmo as mais sombrias imagens naturais de desolação e de terror. Observei a paisagem à minha frente: a casa simples e a simplicidade do aspecto da propriedade, as paredes frias, as janelas semelhando órbitas vazias, os poucos canteiros com ervas daninhas e alguns troncos esbranquiçados de árvores apodrecidas ? e senti na alma uma depressão profunda que não posso comparar a nenhuma sensação terrena senão ao que experimenta, ao despertar, o viciado em ópio: o amargo retorno à vida cotidiana, o terrível descair de um véu. Havia um frio, uma prostração, uma sensação de repugnância, uma irrecuperável aflição de pensamento que nenhum excitamento da imaginação conseguiria forçar a transformar-se em algo sublime. Que era, parei para pensar, que era que tanto em perturbava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e eu não conseguia controlar as sombrias imagens que me enchiam a cabeça enquanto refletia isso. Fui forçado a socorrer-me da conclusão nada satisfatória de que existem, sem dúvida, combinações de objetos naturais muito simples, que têm o poder de nos afetar assim, embora a análise desse poder se situe em considerações além de nossa perspicácia. Era possível, pensei, que um mero arranjo diferente nos pormenores da cena, dos detalhes do quadro, bastasse para modificar, ou talvez, parar suprimir sua capacidade de provocar impressões aflitivas. Com essa idéia na cabeça, guiei o cavalo até a margem íngreme de um fosso negro e sinistro cujas águas paradas refulgiam junto a casa e contemplei, com um arrepio ainda mais forte do que antes, a imagem invertida e modificada dos arbusto cinzentos, dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias.



Apesar disso, era nessa desolada mansão que eu tencionava passar algumas semanas. O proprietário, Roderick Usher, havia sido um de meus joviais amigos de infância, mas muitos anos tinham se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, no entanto, que me chegara recentemente numa parte distante do país ? uma carta dele ? exigia pela insistência de seu teor resposta pessoal. A caligrafia revela agitação nervosa. O remetente falava de aguda doença física, de opressiva perturbação mental e do intenso desejo de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com a intenção de lograr, pela alegria de minha companhia, alguma alívio para sua doença. A maneira pela qual tudo isso e muito mais coisas foram ditas e o manifesto estado de espírito expresso no pedido impediram-me qualquer hesitação e por esse motivo obedeci na mesma hora ao que ainda considerava como um convite muito estranho.

Apesar de, quando crianças, termos sido companheiros íntimos, eu na verdade conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre tinha sido excessiva e habitual. Eu sabia, no entanto, que sua família, muito antiga, distinguia-se havia muito tempo pela peculiar sensibilidade de temperamento, demonstrada ao longo de muitos séculos em notáveis obras de arte e que ultimamente se manifestava em repetidos atos de generosa e discreta caridade e também na apaixonada devoção pela complexidade da ciência musical, talvez ainda mais do que por suas belezas naturais e fáceis de reconhecer. Fiquei sabendo também de um fato incrível: o tronco da linhagem dos Usher, embora tão antiga, nunca tinha produzido qualquer ramo duradouro. Em outras palavras, a família se perpetuara apenas em linha direta e assim continuava, com variações bem poucos importantes e temporárias. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto repassava em pensamento a perfeita harmonia entre o aspecto da propriedade e o caráter de seus moradores, imaginando a possível influência que aquela podia ter exercido, ao longo dos séculos, sobre estes ? era essa deficiência, talvez, de um ramo colateral e a conseqüente transmissão direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome da família que haviam ao longo dos tempos identificado ambas de tal modo que fundiram o título original da propriedade na estranha e equívoca designação de Casa de Usher ? designação que, na mente dos camponeses que a utilizavam, parecia servir tanto para a família quanto para a mansão da família.

Eu disse que o único efeito da minha experiência um tanto infantil de olhar para o fosso havia sido aprofundar aquela primeira impressão. Sem dúvida, quando tomei consciência do rápido aumento de minha superstição (por que não usar esse termo?), isso serviu principalmente para intensificar o próprio aumento. Tal é, sei disso há muito tempo, a lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror. E pode ter sido por essa única razão que, ao levantar os olhos de sua imagem no fosso para a própria mansão, surgiu-me na mente uma estranha visão ? tão estranha, de fato, que só a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me sufocavam. Minha imaginação mostrava-se tão excitada que realmente acreditei que em volta da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera especial, própria do lugar e de seus arredores, atmosfera que não se relacionava como o ar do céu, emanando antes das árvores apodrecidas, das paredes cinzentas, do fosso silencioso ? um vapor místico e pestilento, espesso, entorpecido, sutil e lívido.
Afastando do espírito o que devia ser um sonho, examinei mais atentamente o aspecto real do edifício. Sua característica principal parecia ser a extrema antigüidade. Fora grande a descoloração causada pelos séculos. Minúsculos fungos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais qual fina e emaranhada teia. Mas nada disso indicava grande destruição. Nenhum bloco de alvenaria tinha desmoronado, mas parecia haver um profundo contraste entre o encaixe ainda perfeito das partes e as péssimas condições de cada pedra. Isso me lembrou muito a enganosa integridade de antigas peças de madeira que apodreceram por longos anos em algum porão esquecido, sem serem perturbadas pelo sopro do ar exterior. Afora esse indício de grande decadência, porém, a construção não mostrava nenhum sinal de falta de segurança. Talvez o olho de um observador mais atento conseguisse descobrir uma fenda quase imperceptível que riscava a frente do edifício desde o telhado, descendo em ziguezague pela parede até mergulhar nas águas turvas do fosso.
Observando tudo isso, atravessei a cavalo o curto carreiro que levava até a casa. Um cavalariço levou minha montaria, e avancei pelo arco gótico do vestíbulo. Um criado de andar furtivo conduziu-me então, calado, por muitas passagens escuras e tortuosas, até o gabinete de seu patrão. Muitas das coisas que vi pelo caminho contribuíam, não sei como, para fortalecer os imprecisos sentimentos de já falei. Os objetos à minha volta ? os entalhes do forro, as sombrias tapeçarias das paredes, o negrume de ébano do assoalho e as fantasmagóricas armaduras que retiniam quando eu passava ? eram coisas com que eu estava, ou devia estar, familiarizado desde a infância, mas, embora não hesitasse em reconhecê-las como tais, ainda me espantava ao perceber como eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns produziam em mim. Numa das escadas, cruzei com o médico da família. Julguei ver em sua fisionomia uma expressão desanimada e perplexa. Cumprimentou-me agitado e afastou-se. O criado então abriu uma porta e me levou até a presença de seu patrão.
Achei-me numa sala muito ampla e alta. As janelas, compridas, estreitas e pontudas, tinham peitoris tão afastados do assoalho de carvalho negro que era impossível alcança-los. Fracos raios de luz avermelhada penetravam pelas vidraças guarnecidas com rótulas, só conseguindo tornar visíveis os objetos próximos mais volumosos. O Olhar, porém, lutava em vão para perceber os cantos mais distantes da sala ou os recessos do forro em abóbada guarnecido com entalhes. Sombrias cortinas pendiam das paredes. O mobiliário era excessivo, desconfortável, antigo e gasto. Os muitos livros e instrumentos musicais que jaziam dispersos não conseguiam dar vitalidade alguma ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Uma ar de severo, profundo e irrecuperável desalento pairava sobre as coisas e impregnava a tudo.
Assim que entrei, Usher levantou-se do sofá onde estava deitado ao comprido e cumprimentou-me com calorosa vivacidade, na qual havia muito, de inicio julguei, de cordialidade forçada, do esforço constrangido de um homem de sociedade entediado. Mas, olhando seu rosto, convenci-me de sua perfeita sinceridade. Sentamos e, por alguns momentos, como ele não falava nada, fiquei olhando-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Com toda a certeza, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente, em período tão curto, quanto Roderick Usher! Só com muita dificuldade consegui admitir que o homem doentio diante de mim era o mesmo companheiro de infância. No entanto, suas feições sempre tinham sido notáveis: tez cadavérica; olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia. Todos esses traços e mais o extraordinário desenvolvimento da fronte combinavam-se num aspecto difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia tal mudança que cheguei a duvidar de que era com ele que falava. A cadavérica palidez da pele e o brilho agora sobrenatural dos olhos, acima de tudo, surpreendiam-me e até me aterravam. O cabelo sedoso também tinha crescido descuidadamente e como, por causa da textura muito fina, flutuasse em vez de cair nos lados do rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, vincular sua expressão fantástica com qualquer idéia de simples humanidade.
Fiquei abalado ao perceber logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência, e logo descobri que isso se devia a um série de fracos e inúteis esforços para dominar tremor freqüente, uma excessiva agitação nervosa. Eu estava preparado para encontrar algo assim, não só por sua carta, mas também pela lembrança de certos traços juvenis e pelas conclusões deduzidas de seu estado físico e de seu temperamento. Suas atitudes alternavam da vivacidade ao desânimo. A voz variava, rapidamente, passando da trêmula indecisão (quando seu ardor parecia tornar-se profundamente entorpecido) para o tipo de energética concisão, para a abrupta, pesada, lenta e oca articulação, para a fala arrastada, controlada, gutural e perfeitamente modulada que se pode observar nos bêbados costumazes e nos fumadores de ópio irrecuperáveis, durante os períodos mais intensos de excitação.
Foi assim que ele se referiu ao objetivo de minha visita, de seu grande desejo de me ver e do alívio que esperava encontrar em minha companhia. Depois, falou por algum tempo do que achava da natureza de sua doença. Segundo ele, era um mal de família e de nascença, para o qual já tinha perdido a esperança de encontrar remédio; mera perturbação nervosa, disse logo em seguida, que sem dúvida ia passar logo. A doença se manifestava numa série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto as ia descrevendo, me deixaram interessado e confuso, apesar talvez de que tenham influído os termos usados e a forma geral da descrição. Ele sofria, e muito, de doentia exageração dos sentidos: só tolerava o mais ínspido alimento; não podia usar senão roupas de determinadas texturas; os perfumes de todas as flores pareciam-lhe sufocantes; até a luz mais suave lhe torturava os olhos e só os sons especiais dos instrumentos de cordas não lhe provocavam horror.

Compreendi que ele estava escravizado por uma espécie anormal de terror.

- Vou morrer ? disse ele. ? Devo morrer nesta loucura lamentável. Assim, assim e de nenhuma outra forma é que vou me perder. Abomino os fatos do futuro, não em si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço diante da idéia de qualquer incidente, até mesmo o mais trivial, que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, na verdade, aversão pelo perigo, a não ser em seu efeito absoluto: o terror. Neste deplorável estado de abatimento sinto que mais cedo ou mais tarde chegará um momento em que vou ter de abandonar ao mesmo tempo a vida e a razão, na luta com o fantasma sinistro do MEDO.
Descobri também, aos poucos e através de pistas equívocas fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele estava acorrentado a certas impressões supersticiosas quanto à casa em que morava e da qual, por longos anos, não se aventurava a sair... a uma influência, cuja suposta força foi narrada em termos vagos demais para reproduzir aqui... influência que alguns detalhes da matéria e da forma da mansão familiar tinham, às custas de longo sofrimento, conseguindo exercer sobre seu espírito... efeito físico que as paredes e torres cinzentas e o sombrio fosso onde elas refletiam tinham acabado por exercer sobre o moral de sua existência.
Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte do desalento que sofria talvez tivesse origem mais natural e bem mais palpável: na séria e prolongada doença (na verdade, na morte evidentemente próxima) de uma irmã adorada, sua única companheira por longos anos, sua única e última parenta nesta terra.

- A morte dela ? disse ele, com amargura que nunca esquecerei ? tornará (a ele, fraco e sem esperanças) o último representante da antiga raça dos Usher.

Enquanto falava, Lady Madeline (pois era assim que se chamava) passou pela parte mais distante do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com profunda surpresa e uma ponta de medo?  e, no entanto, não encontrava explicação para esses sentimentos. Uma sensação de estupor me sufocava, enquanto seguia com os olhos seus passos. Quando uma porta, afinal, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o irmão, mas este escondera o rosto nas mãos, e só pude perceber que uma palidez maior que a normal tinha tomado conta dos dedos magros, pelos quais escorriam muitas lágrimas emocionadas.

A doença de Lady Madeline vinha desafiando, por muito tempo, a habilidade dos médicos. Apatia permanente, progressivo enfraquecimento físico e crises freqüentes, mas passageiras, caráter parcialmente cataléptico eram o diagnóstico incomum. Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida.
No decorrer dos dias seguintes, seu nome não foi mencionado por Usher ou por mim. Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os recessos mais íntimos de seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral um incessante radiação de tristeza.
Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós como o chefe da Casa de Usher. Mas nunca conseguiria dar uma idéia do caráter exato dos estudos ou das ocupações em que ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealidade excitada e altamente desequilibrada lançava um brilho sulfuroso sobre todas as coisas. Suas longas cantigas fúnebres soarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, lembro-me dolorosamente de certa estranha alteração e amplificação da romântica melodia da última valsa de Von Weber. Quanto às pinturas em que extravasava sua elaborada fantasia e que se metamorfoseavam, pincelada por pincelada, até atingir uma indefinição que me causava estremecimentos ainda mais emocionantes, pois eu não sabia por que estremecia ? quanto a essas pinturas (tão vívidas que até hoje tenho suas imagens diante dos olhos) em vão me esforçaria para retirar delas apenas uma pequena parte, passível de ser traduzida por simples palavras escritas. Através da extrema simplicidade e crueza do desenho, ele retinha e dominava a atenção. Se algum mortal jamais pintou uma idéia, esse mortal foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, na situação em que então em encontrava, dessas puras abstrações que o hipocondríaco conseguia projetar nas suas telas surgia um terror intenso e intolerável, assombro que nem de longe jamais senti nas fantasias (sem dúvida brilhantes) de Fuseli, mas ainda assim concretas demais.
Uma das criações fantasmagóricas de meu amigo em que esse espírito abstrato não era tão rígido pode ser descrita, ainda que pobremente, em palavras. Era um quadro pequeno, representando o interior de uma câmara ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem qualquer interrupção ou adornos. Certos detalhes do desenho conseguiam dar muito bem a idéia de que essa escavação ficava a uma extrema profundidade, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer abertura em toda a sua vasta extensão nem se percebiam tochas ou qualquer outra fonte de luz artificial. No entanto, uma torrente de intensos raios jorrava, tudo banhando num esplendor cadavérico e antinatural.
                Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo, que tornava intolerável qualquer música para esse sofredor, com exceção de certos efeitos de instrumentos de cordas. Foram, talvez, os estreitos limites a que ele se limitava na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos era inexplicável. Deviam ser e eram, tanto nas notas quanto nas palavras de suas loucas fantasias (pois ele muitas vezes acompanhava a música com improvisações verbais rimadas), resultado da intensa e imperturbável concentração mental de que já falei antes, só observáveis nos momentos de maior excitação artificial. Lembro-me facilmente das palavras de uma dessas rapsódias. Fiquei, talvez, tão impressionado quando ele as cantou, porque, na corrente subjacente ou mística de seu significado, julguei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha plena consciência da instabilidade de sua mente altiva sobre seu trono. Os versos, intitulados "O Palácio Assombrado", eram quase exatamente assim:



I



No mais verde de nosso vales,

Por bons anjos habitado,

Outrora um belo e rico palácio,

Radiante palácio, se erguia.

Nos domínios do rei Pensamento,

Lá estava ele!

Nunca serafim algum abriu as asas

Sobre tão bela obra.



II



Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,

Em seus telhados flutuavam, ondulando

(Isso, tudo isso, ocorreu nos velhos tempos

De antigamente)

E toda suave brisa que brincava,

Naqueles doces dias,

Pelos muros pálidos e engalanados,

Um sublime perfume desprendia.



III



Quem passava por esse vale feliz

Por duas janelas luminosas via

Espíritos deslizando, musicais,

Ao som de alaúde bem afinado,

Em volta de um tronco, onde sentava-se

(Porfirogênito (1)!),

Na grandeza de sua glória muito justa,

O senhor desse reinado.



IV



Pela bela porta do palácio

Brilhante com pérolas e rubis,

Ia passando, passando, passando,

E sempre mais cintilando,

Uma tropa de Ecos cujo doce dever

Era apenas cantar

Com vozes de insuperável beleza,

A viva sabedoria do rei.



V



Mas vultos maus, trajados de luto,

Atacaram o alto reino do monarca;

(Ah, choremos, pois nunca mais

O dia vai nascer para ele, o desolado!)

E, em volta do palácio, a glória

Que brilhava e florescia

Não passa agora de mal lembrada história

Dos velhos tempos sepultados.



VI



E quem passa agora pelo vale,

Pelas janelas rubras vê

Enormes formas que fantásticas se movem,

Ao som de melodia discordante;

Enquanto isso, como rio terrível,

Pela pálida porta se precipita

Para sempre uma hedionda multidão

Que gargalha, mas não mais sorri.


Lembro-me bem de que as sugestões despertadas pela balada nos levaram a uma linha de pensamento em que se tornou manifesta uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens (2) já pensaram desse modo), mas devido à insistência com que ele a defendia. Essa opinião, em termo gerais, afirmava que todos os vegetais têm sensibilidade. Mas, na imaginação desordenada de Usher, essa idéia tinha assumido caráter ainda mais ousado e chegava, sob certos aspectos, ao reino das coisa inorgânicas. Não encontro palavras para expressar toda a extensão, ou melhor, a sincera espontaneidade de sua convicção. Tal crença, no entanto, relacionava-se (como já insinuei antes) com as pedras cinzentas da mansão e seus antepassados. As condições para essa sensibilidade eram realizadas, imaginava ele, no método de colocação das pedras e na ordem com que tinham sido organizadas, assim como na dos muitos fungos que as cobriam e nas árvores agonizantes que existiam em volta, mas, acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua duplicação nas águas paradas do fosso. A prova (a prova dessa sensibilidade) podia ser encontrada, dizia ele (e me assustei ao ouvir tal coisa), na lenta mas inegável condensação de uma atmosfera que lhes era própria em torno das águas e das paredes. O resultado podia ser percebido, acrescentou ele, na influência silenciosa, mas perturbadora e terrível, que vinha moldando havia séculos o destino de sua família e que fizera dele, como eu podia ver agora, aquilo que ele era. Essas opiniões dispensam comentário e não farei nenhum.

Nossos livros ? os livros que durante anos constituíram grande parte da existência mental do doente ? estavam , como se pode supor, em harmonia absoluta com esse caráter fantasmagórico. Lemos juntos, atentamente, obras como Vert Vert e a epístola La Chartreuse, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel; Céu e inferno, de Swendenborg; Viagem subterrânea de Nils Klimm, de Holberg; Quiromancia, de Robert Flud, de Jean D`Indaginé e de De la Chambre; Jornada às distâncias azuis, de Tieck; e Cidade do sol, de Campanella. Um dos volumes preferidos era uma pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum, do padre dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens de Pomponius Mela (3), sobre os velhos sátiros africanos e mitológicos, sobre os quais Usher era capaz de sonhar durante horas. Seu maior prazer, no entanto, era a leitura de um raro e curioso livro em gótico in-quarto, o manual de uma igreja esquecida, as Vigiliae Mortuorum secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae.
Eu não podia deixar de pensar no estranho ritual descrito nesse livro e na sua provável influência sobre o hipocondríaco quando, uma noite, depois de me informar repentinamente que Lady Madeline havia morrido, ele disse que tinha intenção de manter o corpo por quinze dias (antes do enterro definitivo) em uma das muitas câmaras subterrâneas existentes no interior da mansão. A razão profana para essa estranha atitude, no entanto, era tal que não me sentia à vontade para discutir. Como irmão, tinha sido levado a essa resolução (assim me contou ele) por causa da natureza incomum da doença da falecida, de certas perguntas inconvenientes e ansiosas feitas pelos médicos e por causa da localização distante e exposta do jazigo da família. Não posso negar que, ao lembrar do rosto sinistro da pessoa que encontrei na escada no dia em que cheguei àquela casa, não senti nenhum impulso para me opor a uma preocupação que me parecia inofensiva e de forma alguma antinatural.
A pedido de Usher, ajudei-o nos preparativos do sepultamento provisório. Depois de colocar o corpo no caixão, nós dois, sozinhos, o levamos até o lugar de descanso. A câmara em que o deixamos (e que estivera fechada por tanto tempo que nossas tochas, quase apagadas pela atmosfera abafada, não nos permitiram examinar) era pequena, úmida, sem nenhuma entrada para a luz e situada a grande profundidade, exatamente debaixo da parte da mansão onde estava o meu quarto de dormir. Aparentemente, tinha sido usada em remotos tempos feudais para as piores finalidades de cárcere privado e, mais recentemente, como depósito de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois parte do chão e todo o interior da longa arcada que percorremos para chegar até ali estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, tinha sido igualmente protegida. Quando girava as dobradiças, seu imenso peso fazia um som incrivelmente agudo e áspero.
Após depositar nossa triste carga sobre cavaletes nesse horrendo lugar, abrimos parcialmente a tampa do caixão, ainda não parafusada, e olhamos o rosto da morta. A incrível semelhança entre irmão e irmã me chamou a atenção, e Usher, adivinhando talvez meus pensamentos, explicou-me num murmúrio que ele e a falecida eram gêmeos e que afinidades de natureza quase incompreensível sempre existiram entre eles. Mas nossos olhares não se demoraram muito tempo sobre a morta, pois era impossível fitá-la sem se perturbar. A enfermidade que assim levara ao túmulo a jovem senhora tinha deixado, como é normal em todas as doenças de natureza estritamente cataléptica, um arremedo de coloração no seio e no rosto e uma sombra de sorriso nos lábios, que é tão terrível na morte. Recolocamos e parafusamos a tampa do caixão e, fechando a porta de ferro, voltamos abatidos para os cômodos pouco menos sinistros dos andares superiores da mansão.
Então, passados alguns dias de amarga tristeza, ocorreu uma nítida mudança nos sintomas da perturbação mental de meu amigo. Seu modo de ser habitual desapareceu. Suas ocupações diárias eram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava a esmo de sala em sala, com passos apressados e irregulares. A palidez de seu rosto assumiu, se isso é possível, um tom ainda mais cadavérico, mas a luminosidade de seus olhos dissipou-se completamente. Não se ouvia mais o tom áspero de sua voz, como às vezes sucedia antes, e um trêmulo balbucio, como se estivesse tomado de horror extremo, passou a caracterizar o seu modo de falar. Houve momentos, na verdade, em que pensei que sua mente sempre agitada estava em luta com algum segredo opressivo, empenhando-se em reunir coragem para contá-lo. Outras vezes era eu levado a atribuir tudo aquilo à inexplicável confusão da loucura, pois o via fitar o vazio durante horas, numa atitude da mais profunda atenção, como se estivesse ouvindo algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me causasse terror e me contaminasse. Senti-me aos poucos, inexoravelmente, invadido pela estranha influência de suas fantásticas mas impressionantes superstições.



Foi especialmente ao me deitar, já tarde da noite, sete ou oito dias depois de colocarmos o corpo de Lady Madeline na câmara, que percebi toda a força de tais sentimentos. O sono não se aproximava de minha cama e as horas ecoavam-se lentamente. Lutei para controlar o nervosismo que me dominava. Esforcei-me por acreditar que muito, senão tudo o que estava sentindo, se devia à perturbadora influência da soturna mobília do aposento, das tapeçarias escuras e esfarrapadas que, movidas pelo sopro de uma tempestade que se formava, oscilavam de modo irregular nas paredes e roçavam inquietas pelos adornos do leito. Mas meus esforços foram inúteis. Um tremor incontrolável aos poucos tomou conta de meu corpo e, afinal, instalou-se sobre meu próprio coração o íncubo de uma comoção inteiramente infundada. Sacudindo essa sensação com um arquejo e um sobressalto, ergui-me dos travesseiros e, sondando com o olhar a escuridão do aposento, prestei atenção e ouvi ? não sei por quê, talvez por um instinto que me aguçou o espírito ? ruídos baixos e indefinidos que nas pausas da tempestade, a longos intervalos, vinham não sabia de onde. Dominado por forte sentimento de horror, inexplicável e por isso mesmo impossível de suportar, vesti-me rapidamente (pois senti que seria impossível dormir naquela noite) e tentei livrar-me, caminhando de um lado para outro pelo aposento, do estado penoso em que me achava.
Logo depois de iniciar as idas e vindas, um leve ruído de passos numa escada próxima me chamou a atenção. Logo reconheci que era Usher. No instante seguinte, ele bateu de leve em minha porta e entrou, trazendo um lampião. Seu rosto estava, como sempre cadavérico, mas além disso havia uma espécie de riso louco em seus olhos, e, e, seu modo de proceder, uma histeria evidentemente contida. Seu aspecto me aterrou, mas qualquer coisa era preferível à solidão por mim suportada durante tanto tempo e acolhi sua presença com grande alívio.

- E você não o viu? ? perguntou ele de repente, depois de olhar em volta por alguns momentos, sem silêncio. ? Não o viu? Mas espere! Você vai ver.

Assim dizendo ? e enquanto protegia cuidadosamente o lampião ? correu para uma das janelas e a escancarou para a tempestade.

A impetuosa fúria das rajadas de vento quase nos levantou do chão. Era na verdade uma noite tempestuosa, mas ainda assim bela e espantosamente singular no seu terror e perfeição. Aparentemente, um redemoinho juntara todas as suas forças ao nosso redor pois ocorriam freqüentes e violentas mudanças na direção do vento, e a extrema densidade das nuvens (tão baixas que pareciam pesar sobre os torrões da mansão) não nos impedia de observar a viva velocidade com que deslizavam de todos os pontos, chocando-se umas contra as outras, sem desaparecer ao longe. Digo que nem mesmo a sua extrema densidade nos impossibilitava de perceber isto, embora não pudéssemos vislumbrar a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas tanto a superfície inferior das imensas massas de vapor agitando como todos os objetos terrenos das proximidades brilhavam, por efeito de uma luz antinatural que provinha de uma exalação gasosa ligeiramente luminosa e perfeitamente visível que envolvia toda a mansão como uma mortalha.

- Você não deve... não pode ficar olhando para isso! ? eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. ? Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível.

O volume antigo que peguei era o Mad Trist (Assembléia do loucos) de Sir Launcelot Canning. Disse que era um dos favoritos de Usher mais como triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, sua prolixidade vulgar e estéril muito pouco continha que pudesse interessar à idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, porém, o único livro à mão ? e nutri a vaga esperança de que a excitação que então agitava o hipocondríaco talvez encontrasse algum alívio (pois a história das perturbações mentais está cheia de anomalias desse tipo), até mesmo nos excessos de imaginação que eu ia ler. A julgar pelo ar de intensa vivacidade como que ouvia, ou parecia ouvir a leitura, podia congratular-me pelo êxito de minha tentativa.

E Ethereld, que tinha por natureza coração audaz e agora se sentia muito forte, graças ao vigor do vinho que havia bebido, não gastou mais tempo em discutir com o eremita, que em verdade tinha caráter obstinado e malicioso. Sentindo a chuva nos ombros e temendo que caísse a tempestade, levantou a maça e, com vários golpes, logo abriu espaço nas tábuas da porta, para passar a mão com luva de ferro; brandindo-a com firmeza, quebrou e lascou e despedaçou de tal foram a madeira que o eco desse ruído seco e oco alarmou toda a floresta.

Ao terminar esta frase, assustei-me e parei por um momento, pois em parecia (embora logo concluísse que estava sendo iludido por minha excitada imaginação), me parecia que, de algum ponto remoto da mansão, chegava indistintamente a meus ouvidos algo que, por sua exata semelhança, podia ser o eco (apesar de baixo e abafado) do ranger e estalar que Sir Launcelot descrevia tão detalhadamente. Era, sem dúvida, apenas a coincidência que me chamava a atenção, pois que, em meio do bater dos caixilhos das janelas e dos ruídos da tempestade crescente, o som nada tinha, por certo, que pudesse me interessar ou perturbar. E continuei com a história:

Mas o bom paladino Ethelred, entrando agora pela porta, ficou dolorosamente enraivecido e surpreendido por não encontrar nem sinal do malicioso eremita, mas sim, em seu lugar, uma dragão coberto de escamas, de aparência prodigiosa e com língua de fogo, que guardava um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a muralha pendia um escudo de bronze reluzente onde estava escrita a legenda:

Quem aqui penetrar, conquistador será;

Quem o dragão matar, o escudo ganhará.

E Ethelred levantou a maça e golpeou a cabeça do dragão, que caiu a seus pés, exalando o pestilento suspiro com um guincho tão horrível, áspero e penetrante que Ethelred teve de tapar os ouvidos com as mãos para suportar aquele terrível som, como jamais tinha ouvido antes.

Aqui, outra vez parei abruptamente, agora com a sensação de tremenda surpresa, pois não podia haver qualquer dúvida de que, desta vez, ouvi realmente (embora fosse impossível dizer de onde provinha) um grito ou rangido baixo, aparentemente distante, mas áspero, prolongado, singularmente agudo e dissonante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia imaginava como o guincho do dragão descrito pelo romancista.

Oprimido, como eu naturalmente estava, diante dessa Segunda e tão extraordinária coincidência, por mil sensações conflitantes, nas quais predominavam a perplexidade e o extremo terror, consegui ainda manter suficiente presença de espírito para não aguçar, com qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza de que ele houvesse percebido os ruídos em questão, embora, sem dúvida, uma estranha alteração tenha ocorrido nos últimos minutos em seu rosto. Sentado diante de mim, fez girar pouco a pouco a cadeira até ficar de frente para a porta do aposento, de forma que eu só podia ver parcialmente seu rosto, apesar de perceber que seus lábios tremiam, como se estivesse murmurando baixinho. Pendeu a cabeça, mas eu sabia que não estava adormecido, porque o olho que via de perfil mantinha-se muito aberto e fixo. O movimento de seu corpo também desmentia essa idéia, pois oscilava de um lado para o outro com um balanço suave, embora constante e uniforme. Tendo notado rapidamente tudo isso, voltei para a narrativa de Sir Launcelot, que continuava assim:
E agora o paladino, tendo escapado à terrível fúria do dragão e lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encantamento que sobre ele pesava, afastou a carcaça do caminho e valorosamente avançou pelo chão de prata do castelo na direção da parede em que pendia o escudo, o qual, na verdade, não esperou que ele chegasse até perto, caindo-lhe aos pés sobre o chão prateado, com horrendo e retumbante estrondo.
Nem bem essas palavras me passaram pelos lábios, ouvi distintamente como se um pesado escudo de bronze de fato tivesse caído, naquele momento, sobre um chão de prata? uma reverberação nítida, surda, metálica e poderosa, apesar de aparentemente abafada. Inteiramente nervoso, fiquei em pé de um salto, mas o movimento regular de balanço de Usher não se alterou. Corri para a cadeira diante de si e todo o seu rosto apresentava rigidez de pedra. Mas, assim que lhe toquei o ombro com a mão, forte estremecimento sacudiu todo o seu corpo, um sorriso doentio brincou em seus lábios como se não tivesse consciência de minha presença. Inclinando-me sobre ele, pude afinal compreender o sentido terrível de suas palavras.

- Não ouve, agora?... Sim, estou ouvindo e já ouvi antes. Há muitos, muitos, muitos, muitos minutos, muitas horas, muitos dias, venho ouvindo... e no entanto não tive a coragem... Oh, pobre de mim, miserável infeliz!... não tive coragem... não tive coragem de falar! Nós a enterramos viva! Eu não disse que meus sentidos eram aguçados? Agora lhe digo que ouvi os primeiros movimentos dela no caixão. Ouvi-os... há muitos, muitos dias... mas não tive coragem... não tive coragem de falar! E agora... esta noite... Ethelred... ha! há!... o rompimento da porta do eremita e o grito de morte do dragão e clangor do escudo!... Seria melhor dizer o destroçar do caixão e o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e sua luta lá dentro das arcadas de cobre da cripta! Oh, para onde é que vou fugir? Pois ela não vai chegar agora mesmo? Não está vindo apressadamente para censurar minha sofreguidão? Não são seus passos que ouço na escada? Não é a batida pesada e horrível de seu coração que estou ouvindo? Louco! ? e aqui levantou-se, de um salto, furioso, e berrou cada sílaba, como se estivesse entregando a própria alma nesse esforço ? Louco! Digo-lhe que ela está agora, atrás da porta!
Como se a energia sobre-humana de suas palavras produzisse a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual apontava foi abrindo lentamente, nesse instante, suas mandíbulas negras e pesadas. Havia sido obra do vento furioso ? mas além da porta estava de fato a figura alta e amortalhada de Lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de violenta luta por todo o seu corpo emagrecido. Por um momento ela permaneceu trêmula e vacilante no umbral. Depois, com um gemido baixo e queixoso, caiu pesadamente sobre o irmão, e em sua violenta e agora final agonia. Arrastou-o consigo para o chão, já morto, vítima dos terrores que tinha previsto.
Fugi aterrorizado daquele quarto e daquela mansão. A tempestade ainda soprava com toda a fúria lá fora, quando atravessei o carreiro. De repente fulgurou sobre o caminho uma luz fantástica, e me virei para ver de onde podia provir luminosidade tão estranha, pois atrás de mim só havia a vasta casa e suas sombras. A irradiação vinha da lua cheia e cor de sangue, já baixa no horizonte, e brilhava agora vivamente através daquela fenda antes quase invisível, à qual já me referi, que descia em ziguezague do teto até a base do edifício. Enquanto eu a olhava, a fenda foi se alargando rapidamente... soprou uma feroz rajada de vento... O círculo inteiro do satélite tornou-se visível aos meus olhos... Meu cérebro vacilou quando vi aquelas sólidas paredes desmoronarem... ouviu-se um longo e desordenado estrondo, como o retumbar de mil cataratas... e o fosso fétido e profundo, a meus pés, fechou-se, tétrica e silenciosamente, sobre os restos da Casa de Usher."



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(1) Porfirogênito: Significa, em grego, "nascido na púrpura". Dizia-se dos filhos dos antigos imperadores do Oriente nascidos durante o reinado do pai.

Edgar Allan Poe.

Baixe o conto aqui.

Modelo de Capa para entrega de Trabalhos e Relatórios. [6ª Séries]

Caros alunos,

Como já orientado em sala, segue abaixo o modelo de capa para entrega de Trabalhos e Relatórios, das disciplinas de Língua Portuguesa e Leitura e Produção de Textos. Qualquer dúvida nova que surgir estarei à disposição para saná-la.

Abraço,

Profº Mauro.


Modelo de Capa para entrega de Trabalhos e Relatórios.

Caros alunos,

Como já orientado em sala, segue abaixo o modelo de capa para entrega de Trabalhos e Relatórios, das disciplinas de Língua Portuguesa e Leitura e Produção de Textos. Qualquer dúvida nova que surgir estarei à disposição para saná-la.

Abraço,

Profº Mauro.

quinta-feira, abril 07, 2011

"A Cartomante" de Machado de Assis. [7ª séries]

Caros alunos,


O conto abaixo é "A Cartomante", será o conto que, como avisei em sala, iremos estudá-lo nos próximos dias. Preparem a leitura para a sala, isso é muito importante.
Boa noite e boa leitura,

Profº Mauro.



Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?

— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
                 Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
                 Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
                  Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
                  Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
                  No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
                Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
                      Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

— Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
                Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
                   A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...

— A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

— As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
                  Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
                    A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.